23 de jun. de 2011

Questões arqueológicas e históricas

ESTUDO DO LIVRO DE JOÃO
Material divulgado pela União Missionária Brasileira

O quarto evangelho continua um enigma para qualquer investigação racional. Como dissemos, ele deve ser lido “vendo” e “ouvindo”. Centenas, se não milhares de livros a respeito da obra de João foram lançados e nenhum comentário chegou à altura do evangelho. Todas eles estão como só roendo as margens e devemos mostrar a humildade que nos compete ao procurar ouvir a mensagem do evangelista. O melhor dos comentários não dispensa o estudo cuidadoso e pessoal do próprio Evangelho.

Acontece, no entanto, que muitos crentes ao estudarem a Bíblia e considerando cada palavra como “inspirada e infalível”, se assustam quando percebem que a Palavra, assim como ela foi aceita e perpetuada no Cânon Neo-Testamentário, já é resultado de um longo processo histórico.

Há trechos da Palavra que permitem mais do que uma única maneira de interpretação. Há trechos que continuam enigmáticos e que não devem ser “explicados” à força. Se começarmos a dissecar a Palavra de Deus, “desmistificando-a", nada mais restará da mensagem que Deus nos quer passar. Para estudá-la é primeiramente necessário ter humildade.

O pior comentarista é aquele que “explica tudo”. Como o próprio João diz em 3.8: “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito”. Dependemos desse “sopro” para “ouvir” e “ver” a mensagem de Deus, principalmente no evangelho joanino.

Mesmo se começarmos a “ouvir” e a “ver” a mensagem de João, devemos ter claros na nossa mente alguns fatos, sejam eles históricos ou culturais. Nada têm a ver com “a mensagem” em si. Essa continua eterna. As questões que abordaremos hoje se referem às circunstâncias históricas e culturais em que João compôs a sua obra. Faremos bem em deixá-las claras e definidas. Vamos então procurar conhecer os parâmetros desse evangelho? De certo modo podemos vê-los como uma moldura dentro da qual João faz a sua exposição.

Pensamos ser fundamental para o estudo deixar para o início quatro questões definidas. São as seguintes:

Qual a origem, a base, da visão joanina?
Quem é o autor e quando ele escreveu seu evangelho?
Quais as prioridades do evangelho?
A versão do evangelho como a temos é a versão original?

A PRIMEIRA QUESTÃO é a origem da visão joanina. Qual a origem de uma visão tão diferente da dos evangelhos sinópticos?
Como já dissemos, o cristianismo que nos dá a conhecer o quarto evangelho, difere do cristianismo dos sinópticos e das Epístolas de Paulo. Para explicar a diferença entre a visão dos sinópticos e a visão joanina partiu-se, durante muito tempo, da seguinte hipótese: O cristianismo nasceu do judaísmo na Palestina. Era um movimento judaico-cristã, partindo da situação relativamente homogênea religiosa e cultural judaica que os sinópticos nos mostram (Fariseus e saduceus contra Jesus).

Mais tarde, em terras fora da Palestina, através da influência grega, surgiu um cristianismo helenizado, diferente. A tese comum era que desse cristianismo helenizado o evangelho de João teria surgido como resultado. Como o Evangelho de João contém incontestavelmente elementos helenísticos, ele sempre foi datado em um período mais tardio. Para alguns, o quarto evangelho foi escrito só no segundo século. Neste caso seria pouco confiável quanto ao “Jesus histórico” e mais um resultado da “Interpretação Cristológica” de uma época posterior.

Hoje, quando já sabemos que o Evangelho de João foi escrito ainda no primeiro século da era cristã (veja questão 2), surge a seguinte pergunta: como João desenvolveu a sua visão, se ela fora praticamente simultânea aos sinópticos, sem nutrir-se de uma corrente judaica com elementos espiritualistas já presentes?
Os achados de Qumran dos últimos anos trouxeram à luz textos judaicos com nítidos traços, digamos “esotéricos” (não confunda com o que hoje se entende por ‘esotérico’). Como mostra Oscar Cullmann em sua obra “Das Origens do Evangelho” (Ed. Novo Século. 2000), o Evangelho de João finca suas raízes neste judaísmo “esotérico” já presente quando Jesus vivia.

Para concluir e para não estender muito essas considerações (pois nada acrescentam ou tiram do conteúdo da mensagem de João), convêm saber que, no tempo de Jesus e durante o surgimento da igreja judaica-cristã, havia diferentes correntes religiosas judaicas paralelas. Tivemos o movimento farasaico com diversas facções; havia os Essênios, presentes na comunidade; existia a seita de Qumran com sua rígida política contrário ao sistema sacerdotal no Templo e mais os assim chamados “gregos”, judeus hostis ao Templo. O Evangelho joanino tem sua base numa síntese de alguns desses movimentos presentes na época de Jesus. Pouco ou nada ouvimos a respeito nos evangelhos sinópticos.

Resumindo: O Evangelho de João não é um produto de uma cristologia posterior, tardia, helenizada. Ele é testemunho genuinamente judaico-cristão, mesmo com sua influência do pensamento grego. Quem quer que seja o autor, “João Discípulo” ou “João Presbítero”, o evangelho foi composto enraizado numa das correntes judaicas presente no primeiro século e adaptado para cristãos de origem gentílica (não judaica).


A SEGUNDA QUESTÃO refere-se à origem da obra. Quem a escreveu, e quando?
Baseado na suposição errônea de uma cultura joanina tardia (veja item acima), tinha-se como certo que o Evangelho de João datava do segundo ou até terceiro século cristão, sendo mais “resultado” do processo cristológico na igreja primitiva gentílica do que “Testemunho” evangelístico.

Em Medinet el-Fajum, às margens do deserto da Líbia, local que pertence ao Egito e portanto muito distante da Palestina, foram encontrados em escavações efetuadas nos anos 20 do século passado muitos papiros bem conservados. Para você ter uma idéia: o achado mais antigo é um “Contrato de Casamento” do ano 311 antes de Cristo!! Na ocasião, o cientista americano Grenfell adquiriu na região alguns pequenos pedaços de pergaminho. Não encontrou tempo para examiná-los a fundo. Seu sucessor, C.H. Roberts, conseguiu decifrá-los e, em 1934, determinou a idade do pedaço de papiro com grande precisão.

A surpresa era total: o papiro data dos anos 100-120 d.C. Na face frontal dele constam algumas frases do texto do cap.18 (versos 31-33) do evangelho de João. No verso, as palavras dos versos 37 e 38¹, portanto partes da história da paixão segundo João. Consta no verso: “Logo, tu és rei? Respondeu Jesus: Tu dizes que sou rei. Eu para isso nasci e para isso vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade, ouve a minha voz...” Imediatamente, o texto foi comparado com o da nossa Bíblia: era idêntico! Com esse achado encontramo-nos perante partes da cópia mais antiga conhecida do Evangelho de João!

Resumindo: Com esse e outros achados extraordinários, as teorias de um “evangelho joanino tardio” (isto é = escrito no segundo ou terceiro século) começavam a ruir. Se no ano 125 d.C. já circulavam cópias do evangelho joanino no distante Egito, o original certamente foi escrito bem antes, ainda no primeiro século. Embora a briga entre os historiadores continue, a maioria dos eruditos hoje data o quarto evangelho antes do fim do primeiro século, podendo ter sido escrito pelo próprio apóstolo. Historicamente nada prova o contrário, como demonstrou John A.T.Robinson (um teólogo liberal) na sua grande obra “Redating the New Testament” (SCM-Press,London, 1976).

¹ A divisão do texto bíblico em capítulos só foi introduzida por Estevão Langton (Arcebispo de Cantuária) em 1214; a divisão em trechos em 1263 por Hugo de Saint-Clair e a divisão em versículos, universalmente aceita, foi realizada em 1551 por Robert Stevens.

A TERCEIRA OBSERVAÇÃO a ser feita, antes de partirmos para o estudo do Evangelho de João se refere à composição da obra.
Há uma historinha que nos ajuda entender o que queremos dizer. Dizem que João tinha uma caixa na qual ele, cada vez que se lembrava de algo referente ao ministério de Jesus, depositava um bilhete em que havia anotado seus pensamentos. Com o decorrer dos anos juntava inúmeras lembranças e considerações.

Quando o livro foi escrito, o autor fez uso das anotações, não dando prioridade à cronologia (ordem) histórica. Ele desenvolveu sua imagem de Cristo, dando preferência à uma crescente revelação do Cristo encarnado (= Deus em forma humana), selecionando exatamente aquele material adicional (não encontrado nos Evangelhos sinópticos) que melhor haveria de servir para revelar a luminosidade da glória do Senhor, sua Divindade no mais alto sentido do termo.

Isso explicaria algumas falhas na seqüência histórica. Para João era mais importante desvendar o mistério da encarnação passo a passo do que observar a ordem biográfica na vida de Jesus. Ao mesmo tempo há informações precisas que não encontramos nos “sinópticos”, como a extensão do ministério de Jesus: aproximadamente três anos.

Entre as muitas teorias quanto à origem desse Evangelho, há uma corrente que defende que “João Apóstolo” teria escrito a parte original, ainda em Jerusalém. Daí as indicações corretas. Mais tarde, a “Escola Joanina”, isto é, “João Presbítero” (caso ele tenha existido), ou seguidores da primeira geração, teriam completado a obra, fora da Palestina. Daí algumas imprecisões históricas.

Resumindo: O Evangelho preferencia o desenvolvimento da visão do Cristo eterno a uma ordem biográfica da vida do Senhor.

A QUARTA E ÚLTIMA CONSIDERAÇÃO:
Quando foi incluído no Cânon do N.T., o Evangelho já havia passado por pós-redações realizadas ainda no primeiro século. Não sabemos quem as efetuou. O último capítulo, por exemplo, foi acrescentado à escrita original. O mesmo vale do trecho que vai dos versos 1 a 11 do capítulo oitavo. Os dois textos respiram o ar joanino; portanto devem pertencer à verídica tradição joanina. Mas, historicamente falando, foram acrescentados posteriormente. Outros questionamentos, mais delicados, são feitos quanto a determinados trechos do capítulo seis. Falaremos deles quando a nossa leitura chegar a eles.

Enquanto os fatos nos Evangelhos sinópticos acontecem em grande parte na Galiléia, João focaliza a atividade de Jesus na Judéia e melhor, em Jerusalém e relacionada ao culto no Templo. No seu relatório da paixão encontramos valiosos detalhes que os outros evangelistas não conheciam. Universalmente é aceito que as informações mais exatas referentes à paixão do Senhor constem em Marcos e em João.

Resumindo: O Evangelho de João, como o temos no cânon neo-testamentário, sofreu em (pequena) parte, uma pós-redação pela igreja primitiva, já no primeiro século cristão, possivelmente no intuito de adaptá-lo melhor ao uso nas comunidades.


Quem estiver interessado em aprofundar o conhecimento a respeito das considerações acima, encontrará uma síntese boa e equilibrada na Introdução do “Comentário do Novo Testamento”, Exposição do Evangelho de João, Ed. Cultura Cristã, 2004 (William Hendriksen).

Agora não queremos perder mais tempo com a introdução. Queremos “ouvir” as palavras que nos estão sendo sussurradas aos ouvidos através desse maravilhoso Evangelho. Queremos “ver a Jesus” assim como João O viu e O entendeu.

Vamos juntos?



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